A intervenção federal no Rio de Janeiro e a tramitação da Reforma da Previdência

Tramitam atualmente no Congresso Nacional inúmeras Propostas de Emenda à Constituição (PEC), entre elas, a mais relevante é a PEC 287/2016, que trata da “reforma da previdência”, cuja discussão em plenário está prevista para ser iniciada na próxima terça-feira (20), com possível início de votação para o dia 28.

Nesse momento, em que é anunciada a edição de decreto presidencial instituindo intervenção federal na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, surgem dúvidas sobre os efeitos dessa decretação: ela impedirá a apreciação da PEC 287/2016 pelo Plenário? Ela poderá continuar tramitando na Câmara e seguir ao Senado? Se aprovada pelo Senado, poderá ser promulgada? Qual a condição para tal decreto manter-se vigente?

Dado que o referido decreto ainda não foi divulgado, nesse momento a análise se dá “em tese”, podendo ser totalmente desautorizada pelos fatos.

Em princípio, a Constituição Federal é clara:

“Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:

I – manter a integridade nacional;

II – repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;

III – pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;

IV – garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;

V – reorganizar as finanças da unidade da Federação que:

  1. a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior;
  2. b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei;

VI – prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;

VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:

  1. a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
  2. b) direitos da pessoa humana;
  3. c) autonomia municipal;
  4. d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.
  5. e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.”

Fora dessas situações, inexiste a possibilidade de intervenção do Governo Federal nos Estados, e cada uma dessas situações tem uma origem histórica e fundamento nos princípios estruturantes da Constituição, como a defesa do Estado e da ordem constitucional, o princípio federativo, a independência e harmonia entre Poderes, a garantia dos direitos fundamentais e outros.

Compete privativamente ao Presidente da sua decretação (art. 84, X), devendo seguir os ritos estabelecidos no art. 36, dependendo, em alguns casos, de solicitação do Legislativo ou do STF.

O decreto de intervenção deve especificar a amplitude, o prazo e as condições de execução da intervenção, e, quando for o caso, nomear o interventor, e deverá ser submetido à apreciação do Congresso Nacional no prazo de vinte e quatro horas. Cessado o motivo da intervenção, as autoridades afastadas de seus cargos a estes voltarão, salvo impedimento legal.

A um primeiro exame, a intervenção cogitada estaria fundamentada no inciso III do art. 34, ou seja, “grave comprometimento da ordem pública”, visto que as demais hipóteses não guardam correlação com os fatos narrados.

Surge, nesse caso, dúvida sobre se deveria ou não haver o afastamento do Governador. Contudo, embora a intervenção no Poder Executivo tenha por pressuposto a nomeação de um “interventor”, com plenos poderes, não há determinação expressa desse afastamento. Ainda que não haja, a “intervenção” no exercício de competências suas de direção superior da Administração Estadual revela um afastamento parcial dos poderes do Governador, que deriva da própria incapacidade desse agente político de gerir a crise que dá causa à intervenção.

Por outro lado, não seria indispensável, para que a União colabore com o Estado na superação da crise envolvendo a segurança pública, a própria intervenção.

Não há precedente formal de intervenção federal dessa espécie.

Em 2017, após especulações de que haveria intervenção federal no Espírito Santo, também por problemas envolvendo a segurança pública, a solução adotada foi a de um decreto do Governador em exercício (Decreto nº 113 – S, de 07 fevereiro de 2017) transferir o controle operacional dos órgãos de segurança pública para um general de brigada “Comandante da Força-Tarefa Conjunta, autoridade encarregada das operações das Forças Armadas, para a garantia da Lei e da Ordem no Estado do Espírito Santo”.

O Decreto foi fundamentado em disposições da Lei Complementar nº 97/1999, e a edição de decreto federal de 6 de fevereiro de 2017 autorizando o emprego das Forças Armadas “em decorrência da paralização das atividades dos policiais militares, acarretando insegurança e transtornos à população do Estado”.

Mas tal transferência se deu por um curto período (de 06 a 16 de fevereiro de 2017). No caso em comento, anuncia-se que a “intervenção” se daria até 31.12.2018. Esse prazo, evidentemente, poderia ser abreviado, caso superadas as causas ou motivações da intervenção, restaurando-se a “normalidade”, embora (dadas as causas da situação) nada indique que isso efetivamente virá a ocorrer.

Se decretada a intervenção federal nos termos do art. 34, haveria imediatas consequências políticas, administrativas e jurídicas.

Nos termos do § 1º do art. 60 da CF, “a Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.”

Em qualquer das hipóteses, portanto, não pode ser emendada a Carta Magna.

O significado disso não está expresso na Constituição, mas pode ser extraído de interpretação lógica e sistemática.

Uma hipótese interpretativa seria a de que apenas a promulgação da PEC seria impedida, ou seja, as Casas legislativas não estariam impedidas de continuar discutindo a PEC; apenas a sua promulgação, que implica no seu efetivo ingresso na ordem jurídica, estaria impedida.

Trata-se, por óbvio, de uma aberração interpretativa, pois permitiria que, sob a pressão da intervenção, uma PEC fosse aprovada. O sentido da limitação, porém, é o de se evitar, precisamente, que o Congresso delibere em contexto de intervenção, em qualquer dos casos citados, produzindo norma constitucional que reflita a comoção social ou política que cerca a intervenção e os fatos que a justificaram.

Ao iniciar a sua tramitação, as PECs são submetidas a exame de sua admissibilidade. Via de regra, o parecer pela admissibilidade na Comissão e Constituição e Justiça e Cidadania manifesta-se sobre os requisitos estabelecidos no § 1º do art. 60. Exemplificando-se, o Parecer do Relator da PEC 287/2016 na CCJC assim se pronunciou:

“Não estão em vigor quaisquer das limitações circunstanciais à tramitação das propostas de emenda à Constituição expressas no § 1º do art. 60 da Constituição Federal, a saber: intervenção federal, estado de defesa ou estado de sítio. O País vive hoje um quadro de completa normalidade institucional e democracia florescente.”

Contudo, o Regimento Interno da Câmara dos Deputados é silente sobre isso. Ao referir-se sobre os requisitos de admissibilidade, o art. 201, II apenas menciona os seguintes:

“Art. 201. A Câmara apreciará proposta de emenda à Constituição:

………………………………….

II – desde que não se esteja na vigência de estado de defesa ou de estado de sítio e que não proponha a abolição da Federação, do voto direto, secreto, universal e periódico, da separação dos Poderes e dos direitos e garantias individuais.

……………………………………”

Já o Regimento Interno do Senado Federal faz menção, no § 2º do art. 354, às mesmas restrições para o emendamento fixadas pelo art. 60, § 1º da CF, sem adentrar em detalhes.

A práxis legislativa, portanto, é mais sábia do que a letra fria do Regimento, e atende ao espírito da Constituição, que não distingue entre as situações referidas no § 1º do art. 60, para os seus efeitos.

Dessa forma, se não se admite o início da tramitação da PEC (admissibilidade) na vigência de intervenção federal, o mesmo vale para todas as etapas subsequentes que implicam o exame do mérito, seja na Comissão Especial na Câmara dos Deputados, seja na CCJC ou no Plenário do Senado, pois o pressuposto para a apreciação de PEC é a normalidade das instituições político-administrativas, ou seja, que o sistema federativo e os poderes estejam em pleno funcionamento.

O próprio Presidente Michel Temer o reconhece, ao dizer em sua festejada obra “Elementos de Direito Constitucional”:

“O constituinte esteve atento ao fato de que a reforma constitucional é matéria de relevância inquestionável e, por isso, não pode ocorrer em instante de conturbação nacional. O constituinte exige serenidade, equilíbrio, a fim de que a produção constitucional derive do bom senso e da apurada meditação.” (TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 19 ed. rev. e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2004.):

Caso haja a persistência do Presidente da Câmara dos Deputados em pautar a matéria, de forma a obrigar os parlamentares a deliberarem sobre ela uma vez aprovada pelo Congresso a intervenção federal decretada, caberá mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal a ser ajuizado pelos parlamentares para proteger direito líquido e certo à observância da limitação constitucional.

Dessa forma, a PEC nº 287 não somente não pode continuar a ser apreciada enquanto vigorar a intervenção, como qualquer ato relativo a qualquer outra  PEC, mesmo que já aprovada e aguardando promulgação, poderá ser praticado, por ser absoluto o impedimento do art. 60, § 1º, que prejudica o prosseguimento de qualquer das fases do processo legislativo que produza o emendamento constitucional, pois a “emenda constitucional”, promulgada, nada mais é do que o resultado de um complexo processo legislativo, orientado pela rigidez que atende à necessidade de que somente uma vontade firme, sólida e livre do Legislativo é capaz de produzi-la legitimamente.

Quanto ao decreto de intervenção, a sua aprovação pelo Congresso implica em autorização, no reconhecimento da validade jurídica da situação que se pretende solucionar e sua gravidade, e fixa a amplitude, o prazo e as condições de execução. Presente o término do prazo, ou das razões que a determinaram, exaure-se a intervenção, e, com isso, a PEC poderia voltar a ser apreciada, pelo pressuposto de que se restaurou a normalidade.

Pela sua natureza, porém, não cabe falar em “suspensão” da intervenção, mas no seu término. A decretação de nova intervenção deverá seguir o mesmo rito da intervenção original, e produzirá os mesmos efeitos.

Presumindo-se, portanto, que o referido decreto seja, de fato, de intervenção federal com fundamento no art. 34, III da Constituição, não há como prosperar a PEC 287/2016, enquanto vigorar tal intervenção. Qualquer ação política que contrarie esse entendimento deverá ser de pronto submetida ao Supremo Tribunal Federal pelos autores legitimados.

Saiba mais sobre o instituto da intervenção federal

O instituto da intervenção federal está previsto no inciso X do artigo 84 da Constituição Federal. Segundo este dispositivo, compete privativamente ao presidente da República decretar e executar a intervenção federal. O artigo 34 também da Constituição, elenca as exceções hipóteses em que a União pode intervir nos estados.

O art. 18 da Constituição Federal estabelece que a organização político-administrativa da República é formada por entes federativos autônomos. No entanto, a Constituição também prevê a supressão temporária dessa autonomia em casos excepcionais, por meio da intervenção, instituto típico do Estado federal por meio do qual a atuação autônoma dos entes federativos é temporariamente afastada em nome da proteção da própria Federação.

Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

As hipóteses de intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal estão relacionadas no art. 34 da Constituição.

 

Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:

I – manter a integridade nacional;

II – repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;

III – pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;

IV – garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;

V – reorganizar as finanças da unidade da Federação que:

  1. a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior;
  2. b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei;

VI – prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;

VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:

  1. a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
  2. b) direitos da pessoa humana;
  3. c) autonomia municipal;
  4. d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.
  5. e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.

A decretação e execução da intervenção federal, seja ela espontânea ou provocada, é de competência privativa do Presidente da República, conforme art. 84, X, da Constituição.

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

………………………………………………………………..

X – decretar e executar a intervenção federal;

………………………………………………………………..

 

Previamente, deverão ser ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, órgãos consultivos que emitirão perecer sobre o ato, porém sem valor vinculativo.

A intervenção é formalizada pelo decreto presidencial de intervenção, que especificará sua amplitude, prazo, condições de execução e, quando couber, o interventor nomeado.

Em caso de nomeação de um interventor, as autoridades envolvidas serão afastadas. Quando cessados os motivos da intervenção, elas voltarão a seus cargos, salvo impedimento legal. É o que determina o art. 36, §4º.

Conforme art. 36, §§ 1º e 2º, o Congresso Nacional realizará controle político do decreto de intervenção no prazo de 24 horas. Caso esteja em recesso parlamentar, deverá ser convocada sessão extraordinária no mesmo prazo.

Art. 36. A decretação da intervenção dependerá:

I – no caso do art. 34, IV, de solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo coacto ou impedido, ou de requisição do Supremo Tribunal Federal, se a coação for exercida contra o Poder Judiciário;

II – no caso de desobediência a ordem ou decisão judiciária, de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral;

III — de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do art. 34, VII;

III – de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do art. 34, VII, e no caso de recusa à execução de lei federal.

IV – de provimento, pelo Superior Tribunal de Justiça, de representação do Procurador-Geral da República, no caso de recusa à execução de lei federal.

  • 1º O decreto de intervenção, que especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor, será submetido à apreciação do Congresso Nacional ou da Assembleia Legislativa do Estado, no prazo de vinte e quatro horas.
  • 2º Se não estiver funcionando o Congresso Nacional ou a Assembleia Legislativa, far-se-á convocação extraordinária, no mesmo prazo de vinte e quatro horas.
  • 3º Nos casos do art. 34, VI e VII, ou do art. 35, IV, dispensada a apreciação pelo Congresso Nacional ou pela Assembleia Legislativa, o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade.
  • 4º Cessados os motivos da intervenção, as autoridades afastadas de seus cargos a estes voltarão, salvo impedimento legal.

Esse controle político do Congresso deverá aprovar ou rejeitar a intervenção federal por meio de um decreto legislativo. Caso seja rejeitada, o decreto presidencial interventivo é suspenso, devendo o Presidente cessar imediatamente o ato, sob pena de crime de responsabilidade.

O controle pelo Congresso será dispensado em 2 hipóteses. Primeiro, na intervenção para prover execução de lei federal, ordem ou decisão judicial (art. 34, VI). E também na hipótese de afronta aos princípios sensíveis do art. 34, VII. Nelas, caso o decreto que suspende a execução de ato impugnado for suficiente para restabelecer a normalidade, está dispensado o controle político, conforme § 3º do art. 36.

Se não for suficiente, o Presidente da República decretará a intervenção, devendo o Congresso Nacional se pronunciar sobre o ato no prazo estabelecido.

 

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